Em que minha mãe se reconheça
Todas as mães se reconheçam
E que fale como dois olhos(...)
Eu preparo uma canção
Que faça acordar os homens
E adormecer as crianças.”
(Canção Amiga: Carlos Drumond de Andrade & Milton Nascimento)
Segundo Mário de Andrade(1987) os elementos formais da música, o Som e o Ritmo, são tão velhos como o homem, por estarem presentes nele mesmo, nos movimentos do coração, no simples ato de respirar, no caminhar, nas mãos que percutem e na voz que produz o som; e Millecco Filho(2001) complementa afirmando que “Quando o homem se percebe como um instrumento, como um corpo sonoro, e descobre que estes sons podem ser organizados, nasce a música.” Desta forma, o homem começou a organizar estes elementos sonoros expressando-se musicalmente e utilizando sua arte para diversos benefícios.
O canto acompanha o homem em todas as culturas e nas mais diversas situações: lúdicas, afetuosas, fúnebres, sagradas, profanas. Aos quatro meses de gestação o feto humano já desenvolveu o sentido da audição; assim, o pequeno ser em construção recebe os contatos do mundo extra-uterino e a audição lhe permite diversas sensações como o prazer ou a angústia. O feto ouve principalmente os batimentos cardíacos e a circulação sanguínea tanto sua quanto da mãe em questão, além de outros sons internos e externos.
Um dos sons mais significativos para a criança é o som da voz da mãe que ela reconhece sem dúvida nenhuma logo que nasce. A voz da mãe com sua candura e afeto é que vai dar à criança o holding necessário para que ela se adapte a vida fora do útero materno. Neste sentido, os Acalantos se transformam em redomas acolhedoras à nossa pré-maturidade cultural.
(Seduzir – Djavan)
“Cantar é mover o dom
Do fundo de uma paixão
Seduzir as pedras
Catedrais, Coração(...)
Nas fazendas dos senhores de engenho do Brasil colonial, era comum a prática das famílias brancas entregarem os filhos para serem amamentados e cuidados pelas amas de leite negras. Este ato se refletiu tanto na criação dos meninos(as) do engenho como nos seus jogos e cantigas (kishimoto, 1995). Há relatos em Freyre(2000) de como este hábito acabou por misturar os costumes portugueses e indígenas com as tradições africanas. Desta forma, os Acalantos típicos portugueses ganharam personagens do folclore africano, além de ser introduzidos na cultura brasileira o folclore africano propriamente dito.
Os personagens de influência africana para as cantigas de ninar afro-brasileiras ao invés da Coca ou do Bicho Papão passam a ser: Negros surrões, Negros velhos, Papa-figo(que come o fígado das crianças), Boi da cara preta, Saci-pererê, Zumbi, Bicho Tutu, Tutu Marambá. Vejamos alguns exemplos:
(Bicho Tutu – Domínio Público)
“Bicho Tutu
Sai de cima do telhado
Deixa o menino
Dormir sossegado”
(Tutu Marambá– Domínio Público)
“Tutu Marambá
Não venha mais cá
Que a mãe do menino
Te manda matar”
(Murucututu– Domínio Público)
“Murucututu
Da beira do telhado
Pega este menino
Que ainda está acordado”
Outros temas comuns nos acalantos afro-brasileiros são as referências às mulheres negras escravizadas e seus afazeres domésticos. Observem estes dois exemplos abaixo:
(Mucama Bonita– Domínio Público)
“Mucama Bonita
Vinda da Bahia
Toma este menino
E lava na bacia
Mucama Mulata
Vinda da do Rio
Toma este menino
Proteja-o do frio”
(Acalanto – Domínio Público)
“Menino vá dormir
Eu tenho o que fazer
Vou lavar, vou cozinhar,
Vou sentar para coser
Menino durma cedo
Dormindo vais crescer
Vais ser forte e corajoso
Pra poder se defender”
Mais uma vez seguimos os conceitos de Lopes(2004) para entender o significado de Mucama “Escrava doméstica. Em espanhol, o vocábulo tem o moderno sentido de “criada”, “arrumadeira de hotel”. Do quimbundo “Mukama” “Concubina”, “escrava amante do senhor”. Trata-se nestas duas cantigas de uma personagem materna negra que além de escravizada e serviçal doméstica, provavelmente poderia servir sexualmente ao senhor da casa grande e ainda cuidar do seu filho. O peso nas costas da mulher negra escravizada talvez fosse maior do que o do homem negro escravizado, pois, a exploração não era só para os trabalhos braçais mas, muitas vezes sexualmente, fazendo-as forçadamente pôr no mundo seus filhos bastardos, herdeiros do algoz. Este corpo-ser feminino mais do que invadido, desgastado e ultrajado emocionalmente ainda encontrava afeto materno para cantar acalantos e embalar as crianças que chegavam aos seus cuidados.
Por derradeiro, lembro um Acalanto muito famoso no Brasil devido a nossa tradição rural:
(Boi da Cara Preta – Domínio Público)
“Boi, boi, boi
Boi da Cara Preta
Pega este menino
Que tem medo de careta”
Encontramos na literatura oral de todo o país os autos do boi com variados nomes e versões, falando do bicho que é brabo, de sua força e de suas façanhas escapando sempre da morte ou renascendo magicamente depois de morto. No auto do Boi-Bumbá os personagens centrais são Pai Francisco e Mãe Catirina, ambos negros cativos. Pai Francisco mata o melhor boi do seu senhor para tirar-lhe a língua para Mãe Catirina comer, pois, ela que estava grávida teve este desejo. Em seguida o senhor manda matar o Pai Francisco e Mãe Catirina pede então ao feiticeiro para fazer renascer o Boi-Bumbá para livrar o Pai Francisco da morte. O bicho renasce e finalmente ocorre a grande festa. Observe o poder de Mãe Catirina com relação a vida onde seus desejos maternos são todos possíveis: matar o melhor boi do senhor para comer-lhe a língua, impedir que Pai Francisco seja morto, pedir pela magia do feiticeiro o renascimento do boi e satisfazer seus desejos de grávida. Por maior que seja o poder do boi o da mãe que embala parece bem maior.
O “Leite Sonoro” das mucamas negras nutriu, exorcizou medos, abrandou e criou este sujeito brejeiro, cheio de gingado, festivo, receptivo, afro-mestiço brasileiro. No mínimo o que o brasileiro deve a estes bens em forma de acalantos e suas benfeitoras negras é prestar-lhes homenagens, quem sabe “bater cabeça” para a grande mãe África que o embalou! Parafraseando a Profª Drª Conceição Evaristo: “Que estas cantigas não tenham servido só para embalar o sono dos senhores das casas-grandes, mas, para acordá-los dos seus sonos injustos!”.
(Alguém Cantando – Caetano Veloso)
“Alguém cantando longe daqui
Alguém cantando longe, longe
Alguém cantando muito
Alguém cantando bem
Alguém cantando é bom de se ouvir
Alguém cantando alguma canção
A voz de alguém nessa imensidão
A voz de alguém que canta
A voz de um certo alguém
Que canta como que pra ninguém
A voz de alguém quando vem do coração
De quem mantém toda a pureza
Da natureza
Onde não há pecado nem perdão”
(Alguém Cantando – Caetano Veloso)
*Publicado inicialmente na Revista http://www.africaeafricanidades.com/ - Fevereiro/2010.
REFERÊNCIAS
ANDRADE, Mário. Pequena História da Música. 9ªed. Belo Horizonte: Editora Itatiaia Ltda,1987.
CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. 6ªed. Belo Horizonte: Editora Itatiaia Ltda,1988.
FREYRE, Gilberto. Casa grande e Senzala. 50ª edição. São Paulo: Global Editora, 2005.
KISHIMOTO, Tizuko Morchida. Jogos Tradicionais Infantis: O jogo, a criança e a educação. 2ª ed. Petrópolis: Vozes, 1995.
LOPES, Nei. Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana. São Paulo: Selo Negro Edições, 2004.
MILLECCO FILHO, Luís Antônio e outros.É Preciso Cantar: Musicoterapia, Cantos e Canções. Rio de Janeiro: Enelivros Editora e Livraria Ltda, 2001.
WINNICOTT. D.W. O Brincar e a Realidade. Rio de Janeiro, Imago Editora, 1975.
http://images.google.com.br
4 comentários:
Como seria bom que retrocederce-mos no tempo em! Iria lembrar de tamtas das canções de ninar, e camtar para nossos filhos, um com 33, outra com 29 e o caçula com 12, é que pra nós eles não crece, sempre são crianças.
Beleza.
Oi Lú, é muito bom cantar principalmente pras crianças que não se importam como fazemos, mas, se fazemos! Bjs!
Dorme nenem do meu coração.....
Beijos.
Oi Guará, os bebês precisam muito disso! Bjs!
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