Retornando às publicações no Blog com esta resenha sobre a obra de Nei Lopes e Luiz A. Simas:
RESENHA
FILOSOFIAS AFRICANAS: UMA INTRODUÇÃO
AFRICAN PHILOSOPHIES: ONE INTRODUCTION
FILOSOFÍAS AFRICANAS: UNA INTRODUCCIÓN
DENISE GUERRA[1]
FILOSOFIAS AFRICANAS: UMA INTRODUÇÃO
Os autores cariocas, Nei Lopes e Luís
Antonio Simas, são conhecidos por suas obras dedicadas à cultura
afro-brasileira, nas quais descortinam poeticamente, com irreverência,
musicalidade, leveza e conhecimento de causa nosso imaginário popular. A dupla
traz a tona histórias fundadas no cotidiano das ruas, com personagens
carregados de ginga, magia, jogo de cintura e boas doses de bravura. Nossa
brasilidade, pautada na africanidade sem desmerecer a cultura ameríndia,
perpassam as obras destes dois escritores, detentores do Prêmio Jabuti de 2016
com o livro “história social do samba”. Neste “Filosofias Africanas” há um
convite para reafirmarmos o pensar, a filosofia, a história, as vozes, as tradições,
os bens culturais e simbólicos, e a cosmogonia africana.
O título “Filosofias Africanas” já
aponta para a diversidade de povos e epistemologias africanas que serão
anunciadas neste pequeno grande livro. A finalidade dos autores não é
necessariamente de “afirmar a existência de uma filosofia africana” (p.15), mas
assinalar a presença do saber tradicional africano, anterior ao colonialismo
europeu, que fundamenta práticas e ações traduzidas para o Brasil e o continente
americano como um todo.
Observa-se neste livro de Lopes e
Simas, um olhar atento nos moldes Kékeré[2],
do prazer de cuidar do miúdo, apresentando os legados ancestrais, desde as
histórias (orais ou escritas), sentidos, saberes, reexistências, escrevivências[3]. Desta
forma, a obra nos traz informações sobre cientistas e estudiosos, antigos e
contemporâneos africanos fincados no continente e ou na diáspora, descartando a
ideia de uma África discípula da Europa. Tudo isso aliado a um tratamento
didático dos autores nos anexos, nos blindando com uma coleção de provérbios de
diferentes regiões do continente, um glossário e uma apresentação de pensadores
africanos e afrodescendentes contemporâneos.
Nos Mapas africanos desenhados na obra
em questão há saberes importantes presentes antes da colonização europeia,
entretanto os autores marcam no livro a terra de pertencimento africano também
nos dias de hoje já que temos um continente dividido em cinco regiões,
cinquenta e quatro países traçados na régua, com uma infinidade de línguas,
costumes e notada diversidade de etnias. No que tange às diversas correntes
étnicas, Lopes e Simas apontam a noção de ser e estar no universo sendo o
fenômeno da Força Vital o entendimento que une os africanos como um todo, responsável
pela vida, ligando-nos ao ser supremo, capaz de trazer felicidade e bem-estar, o
qual é mais comumente denominado de àse[4].
Lemos em Filosofias africanas a
reafirmação do pensar, da filosofia, das tradições, dos bens culturais e
simbólicos, evidenciando a essência da cosmogonia africana. Deparamos-nos também
com a inevitável discussão sobre o preconceito racial enfrentado amiúde pelas
pessoas negras, por suas ancestralidades africanas em diáspora ou não. O dito
racismo, herdado de maneira global, é o mesmo que se presta a inferiorizar as
características e a cultura em geral dos afrodescendentes, denunciando o
eurocentrismo.
A obra em questão evidencia que a
cosmovisão africana apresentada, traz uma epistemologia da ancestralidade
baseada na energia vital, uma ética fundante onde tudo e todos possuem o axé,
força vital que é compartilhada e que os conecta independente das diferentes
línguas e culturas existentes no continente africano.
O africano se relaciona com o universo,
a natureza, os seres existentes e as coisas pelo encantamento da força vital,
que constrói, reforça os elos, conecta e sustenta a coletividade. É esse
amálgama que Antônio Olinto traduz em Lody ( 2007, p.12):
“Eis a arte religiosa africana. O africano não esculpe
uma figura. Ele é a figura que esculpe. Não dança. Ele é a dança. Na identidade
perfeita sujeito/objeto, o africano é a
coisa que faz. Para ele, todos os objetos no mundo estão ligados entre si e
estão ligados ao seu corpo e ao seu espírito.”
Lopes e Simas, no capítulo dois seguem
um rondó de circularidades quando versam sobre “O universo e a ilusão do tempo”
(p.23), e explicam que o universo visível é apenas uma camada externa do
universo invisível, o qual é força em movimento, onde tudo está interligado. A
ancestralidade é o elo dinamizador entre passado, presente e futuro, que
misturados dão à concepção africana uma noção de tempo não linear.
O capítulo três foi dedicado à energia
suprema, Força Vital, fenômeno responsável pelo valor soberano da existência de
tudo que há no universo, visível ou invisível. O àse reside em cada um e
na coletividade, nos objetos, nos alimentos, na natureza, nos rituais, “na
sacralização do corpo pela dança, no diálogo dos corpos com o tambor” (SIMAS;
RUFINO, 2018, p.33). O àse deve ser potencializado para que não se
disperse, e essa ação se dá através do culto aos deuses.
Segundo Lopes; Simas no capítulo 4, “Ser
humano” é pertencer a uma comunidade, toda pessoa importa em vida e pós-morte
já que a comunidade se faz importante pela herança e tradição ancestral que
carrega. Os mortos vivem na comunidade ancestral e interagem por meio dos
rituais, das preces, e das oferendas equilibrando o àse. Cultuar os ancestrais é cultuar as energias transmitidas
biogenéticamente entre mortos e vivos, entre o Òrun[5]
e o Àiyé[6].
Em uma ética de cuidados mútuos, o
ser humano banto Múntu é apresentado por Lopes e Simas com uma visão
antropocêntrica equivalente ao conceito de Ubuntu descrito por Noguera
(2011, p. 148):
“Ubuntu
pode ser traduzido como “o que é comum a todas as pessoas”. A máxima zulu e xhosa,
umuntu ngumuntu ngabantu (uma pessoa é uma pessoa através de outras
pessoas) indica que um ser humano só se realiza quando humaniza outros seres
humanos.”
Conforme Lopes e Simas, além do corpo
físico, a pessoa possui uma essência espiritual invisível que sobrevive à
morte. O nome é personificado na natureza da pessoa que pode ser influenciado
por fatores genéticos, socioambientais e até na própria hora do nascimento.
Corpo, espírito, nome são laços indissolúveis entre o ser, sua comunidade e o
universo. Nessa tríade corporal harmônica um movimento ou ginga comparece para
dar o tom na dança que o africano faz em todos os momentos da vida: nascimento,
casamento, colheita, funeral, e que é ponte também para reflexão e criação. E
nesse mote é importante sobre o que Oliveira (2012, p. 38) assinala:
“Nos
jogos de corpo preservamos nossos sistemas de pensamento; na arte do povo,
mantivemos nossos segredos e os publicizamos; na estética negra fabricamos
nossa potência filosófica e científica, ao mesmo tempo, com tensão, mas sem
conflito entre elas.”
Ainda sobre o corpo, no capítulo cinco
“Verbo, palavra flutuante”, Lopes; Simas afirmam que a palavra falada na força
da tradição oral tem um valor fundamental, e com seu caráter sagrado se transforma
na grande escola da vida porta voz da ciência, da religiosidade, do
divertimento. Não há cisão entre o mundo espiritual e o mundo material, a
palavra marca a presença espiritual e a totalidade do ser.
O verbo é também palavra atuante, força
do ser em sua plenitude, sopro animado, que cria o que nomeia com função de
preservar, destruir, recriar o mundo. A palavra tem o poder de animar, por em
movimento, despertar forças. Faltar com a palavra ou mentir é o mesmo que matar
o seu Eu, é se afastar da sociedade.
No capítulo seis, Lopes; Simas discorrem
sobre a apreensão de conhecimentos e a inteligência como algo que se vive na
prática e deve estar a serviço da sorte e da alegria, através de experiências
reais, e fazer o bem à humanidade. Os autores afirmam que o conhecimento
herdado é o mais importante para a cultura africana posto que se encarna em
todo ser. O saber escolar e ou o saber livresco deve ser voltado para algo útil
e não soberbo. O objetivo maior da inteligência é estar a serviço da sorte e da
alegria, afastando os perigos e alongando a vida da sua comunidade.
Do amor pela sabedoria experimentado
apenas pelos seres humanos, até o religar das práticas religiosas, o capítulo
sete do livro em questão faz uma conversa sobre a filosofia enquanto busca do
conhecimento, e religião que num contrassenso do pensamento colonizador afirma
a impossibilidade cognitiva de quem demonstra temor e reverência ao sagrado. Os
autores lembram que desqualificar as práticas simbólicas dos povos africanos
nos séculos XVIII e XIX foi moeda corrente no projeto de poder do colonizador. Deixa
estar que para os africanos não existe uma religião, mas sim a força vital todo
santo dia e em qualquer lugar nomeando saberes e sabenças.
O capítulo oito apresenta, em nome do
subtítulo “Matrizes e Peculiaridades”, dois princípios africanos: Kemet, que
alude ao nome do Egito antigo com toda grandeza dessa civilização, comparada
pelos autores com a soberania da Grécia frente a Roma, e Maat (Deusa da justiça, verdade e boa conduta), enquanto princípio
moral e ético orientador das condutas na vida cotidiana, que deve ser seguido
por todos. Lopes e Simas nos levam a folhear o Livro dos Mortos como detentor
da grande síntese do pensamento, de diversas escolas histórico e filosóficas do
povo egípcio. E, por fim, denunciam a Desqualificação/ Negação do continente
africano, enquanto berço da humanidade, mas que foi usado quanto à depreciação
das crenças como mote para o branqueamento.
No
capítulo nove, pousamos o verbo das Filosofias Africanas através de vozes
plurais, numa encruzilhada de conhecimentos e de encantamentos, começando pelos
yorubás que se localizam em parte dos territórios de Benin, Togo e Nigéria, com
provável origem ao redor do Nilo, portanto pertencentes aos antigos egípcios. O
saber ancestral yorubano, a língua e o universo sagrado permeiam as relações
simbólicas sobre a existência ditadas pelo oráculo Ifá, pai do conhecimento, um livro não escrito, que rege a
intercomunicação dos discursos entre os diferentes domínios sagrados e profanos
desses povos.
Do mesmo modo, outros povos da costa
ocidental foram citados e confrontados com suas cosmogonias, línguas e saberes
aproximados: Akan, Congo-angolanos, Dogons, Bambaras, Diolas, Fangs, Mandinkas,
Igbos, todos revestidos de uma força vital que atende por vários nomes, com
tecidos de filosofia adinkra (para os congo-angolanos) e a visão dualista do
universo pelos dogons, sem esquecer que do lado oriental temos os makondes de
Moçambique, assentados na dualidade da vida com seus tambores onde o espírito
se manifesta na arte, na dança, na performance das máscaras: “só existe a noção
do bem porque o mal anda à espreita.”(p.104)
À guisa de conclusão, a sabedoria das
árvores vem “verdejar quando tudo acinzentar”. O baobá se anuncia como árvore
sagrada da “permanência, da ancestralidade, e da continuidade da vida pela
palavra” (p.106). Lopes e Simas encerram com a sabedoria dos provérbios, e na
companhia de pensadores africanos como Achille Mbembe, Carlos Moore, Franz
Fanon, Molefi Kete Asante, Muniz Sodré entre outros, na certeza de que “a
dinâmica da vida comunitária, em conexão com a força vital” (p.106), atravessa
e se mantém pela diáspora neste e em outros mundos.
Em Filosofias Africanas os autores
retratam uma filosofia do encantamento, e convidam o leitor a reconhecer o
pensar africano desde suas Raízes até seus frutos pela diáspora. Que vocês
possam ouvir o baobá e sentir todo o àse
emanado.
“É
preciso filosofar desde o corpo e reconhecer que o corpo é filosofia encarnada
e cultura em movimento.” (OLIVEIRA, Eduardo, 2007).
Referências
BENISTE,
José. Dicionário yorubá-Português. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
2011.
DUARTE,
Constância L.; NUNES, Isabella R. Escrevivência: a escrita de nós: reflexões
sobre a obra de Conceição Evaristo. 1ªed. Rio de Janeiro: Mina Comunicação
e Arte, 2020.
LOPES, Nei; SIMAS, Luiz Antonio. Filosofias Africanas: uma introdução. 5ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2021.
NOGUERA,
Renato. Ubuntu como modo de Existir: Elementos gerais para uma ética
afroperspectiva. In Revista da ABPN - v. 3, n. 6, nov. 2011 – fev. 2012 • p.
147-150
OLIVEIRA,
Eduardo David de. Filosofia da ancestralidade como filosofia africana: Educação
e cultura afro-brasileira. Revista Sul-Americana de Filosofia e Educação. Número
18: maio-out/2012, p. 28-47.
SIMAS, Luiz Antonio; RUFINO, Luiz. A ciência encantada das macumbas. Rio de Janeiro: Mórula, 2018.
[1] Doutoranda em Educação, PPGE UNESA, Especialista
em cultura africana e afro-brasileira pela UCB, Professora de Educação Física
nos municípios de Queimados e Nova Iguaçu - RJ. E-mail: denise.guerra@yahoo.com.br
[2] Kékeré, adj. Pequeno. (...) Ó fi ojú
kékeré wò mí – Ele me olhou com prazer (lit. ele me olhou com olhos
pequeninos), kéré – ser pequeno. BENISTE, 2011, p. 450.
[3] Escrevivência: Vocábulo criado pela
Escritora, Professora, Doutora Conceição Evaristo, para utilizar inicialmente
em sua literatura, que é marcada pela condição da mulher negra numa sociedade
aviltada pelo racismo. A palavra Escrevivência designa uma dupla dimensão sendo
a vida que se escreve na vivência de cada pessoa, assim como cada um escreve o
mundo que enfrenta. DUARTE; NUNES, 2020.
[4] Àse,
s. 1.Força, poder, o elemento que estrutura uma sociedade, lei, ordem.
[...]. 2. Palavra usada para definir o respeito ao poder de Deus, pela crença
de que é Ele que tudo permite e dá a devida aprovação. [...]. BENISTE, 2011, p.
128.
[5] Òrun, s. Céu, firmamento. = sánmò.
Plano divino onde estão as diferentes formas de espíritos e divindades,
divididos em setores assim relacionados: òrun àpáàdì – onde os erros das
pessoas são impossíveis de reparar, similar ao inferno; òrun afééfé –
local de correção dos espíritos desencarnados; òrun ìsálú – espaço para
julgamento dos espíritos; òrun rere – lugar daqueles que foram bons em
vida; òrun burúkú – local de permanência dos maus espíritos; òrun
àlàfíà – local de paz e tranquilidade. (...). BENISTE, op. cit. P. 625.
[6] Áiyé, s. Mundo, planeta. Olórun
kókóró sí ayé aláyò – Deus, a chave para um mundo feliz. Sùúrù oògùn ayé
– A paciência é o remédio do mundo. Ibidem, p. 144.